A criação
Antes de existir o oceano, a terra, o céu, a Natureza era toda igual. Um disforme caos constituído de matéria grosseira. Nada além de uma massa inerte dentro da qual uma tensão discordante de átomos guerreava: não havia sol para iluminar o universo, não havia lua com raios prateados completando vagarosamente sua silhueta crescente. Nenhuma folha balançava ao vento. Não havia mar para além da linha da praia. Terra, para ser exato, havia, e o ar e o oceano. Mas terra em que o homem não poderia ficar, e água em que nenhum homem poderia nadar, e ar que nenhum homem poderia respirar. Ar sem luz, substância em eterna transformação, sempre em guerra: sem que um único corpo quente lutasse com o frio, o molhado com o seco, o duro lutasse com o macio, as coisas tendo um peso contido por coisas sem peso. Até que Deus, ou a bondosa Natureza, arrumou tudo e separou o céu da terra, a água da terra, nosso ar da estratosfera, uma liberação total. E então as coisas evoluíram, e fora do caos cada coisa encontrou o seu lugar, e se ajeitou numa ordem eterna.
Dois mil e alguns anos depois…
Sabe aquela máxima: “nada se cria, tudo se transforma?” Eis aqui a confirmação. Mesmo lá no comecinho do mundo, quando não havia nem terra, nem céu, nem ar, nem oceano, mesmo então a criação não aconteceu a partir do nada. No início havia “um disforme caos constituído de matéria grosseira”. Devia ser um tipo de argila. Deus se valeu dessa espécie de maçaroca e moldou o universo.
Gosto também da passagem: “Até que Deus, ou a bondosa Natureza, arrumou tudo…” Esse “ou a bondosa Natureza” possibilita dialogar com fiéis e ateus ao mesmo tempo. Espertinho.
Por fim, passa a sensação de começar a história botando as coisas em perspectiva. Parece a abertura de um filme, uma tomada aérea mostrando o universo, o planeta Terra, os continentes, o estado e a cidade onde vamos ambientar a narrativa.