Contos do corpo, 16 – Meus cabelos (a fúria)
Eu poderia dar vários exemplos da relação entre meus cabelos e meu humor, mas vou ater ao mais furioso de todos. A partir daí dá para ter uma ideia de como era minha vida, nessa época.
Ele acordou irritado. Imediatamente fui para debaixo do chuveiro e lavei a cabeça. Passei bastante creme. O dia estava ensolarado, porém ventava. Era janeiro. Eu estava de férias e meu único plano para o dia era ficar em casa, tranquila, brincando de boneca.
Depois que terminei o café da manhã, voltei para o quarto e arrumei a cama. Ele estava semi-molhado. Eu nem mexia. A essa altura já sabia que o melhor era permitir que secasse naturalmente, sem interferência. Se eu desse sorte, ele se ajeitaria de um modo mais ou menos ordeiro. Depois era só botar uma fivelinha aqui, outra ali, para um toque final, mas sem inventar muita moda.
Então minha mãe entra no quarto dizendo que tinha de para o centro, resolver um montão de coisas. Perguntou se eu queria ir junto. Respondi que não. Ela falou que se eu fosse junto, passaria na loja de sapatos para comprar a tal melissa que eu tanto queria. Fui.
Saí com ele naquele estado, no meio da transição. Minha cabeça estava na melissa, e esqueci de pegar as fivelinhas. Quando chegamos ao centro, a fúria tinha voltado, com força redobrada. Acho que ele queria ter ficado em casa, brincando de boneca. Fazia um calor infernal e no minuto que desci do carro, eu também me arrependi de ter caído na armadilha da melissinha. A primeira parada foi no fórum, depois correio, banco, despachante e prefeitura. A cada parada ele se arreganhava um pouco mais. Debaixo da juba, eu suava e bufava, me arrastando debaixo do sol, esperando em filas, sacrificando minhas férias no fórum. Frustrante. Eu reclamava. Minha mãe ignorava. Eu reclamava mais, ela brigava comigo.
Perguntei se ela tinha um grampo, pelo menos. Não tinha. Também não dava para entrar em farmácia para comprar. Um mísero grampinho. Parada nas filas eu buscava meu reflexo nas portas de vidro, para ver o estado da coisa. Era como se toda minha frustração subisse pelo meu cérebro e extravasasse pelos fios, em todos os sentidos e direções possíveis.
Entre uma parada e outra, nós atravessávamos o Largo do Rosário, um lugar até bem charmoso para a Campinas daquela época. Era também apinhado de gente. Nesse dia, me pareceu especialmente apinhado. Havia gente demais, um calor insano, uma ventania maluca, uma mãe com compromissos infinitos e um mau humor que me corroía por dentro. Mas havia bancos. Alguns, na sombra.
Perguntei se podíamos nos sentar um pouquinho. Não, não dava. Cinco minutos, para descansar do fórum, do despachante e da fila da prefeitura. Não dava. Acho que eu queria respirar e me acalmar. Não. Mas com aquela idade eu não sabia que era isso que eu queria. Eu não sabia o que eu queria. Eu queria me transportar para o Hawaii.
Calculo que houvesse umas trezentas pessoas ou mais aglomeradas ali, em trânsito. Gente com todo tipo de cabelo ou mesmo sem cabelo. A maioria era adulta, todos mais altos que eu. E no entanto foi no meio dos meus cabelos que aterrissou o cocô amarelo e pegajoso de um pombo! Olhei para cima e senti a coisa escorrendo pelo meu couro cabeludo. Passei a mão. Olhei para a cara da minha mãe, como quem pede uma explicação. Uma explicação cármica.
Por que comigo? Por que justo nesse dia? O que eu tinha feito para merecer isso e, por fim, se agora ela entendia o que eu estava sentindo.