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13 de agosto de 2014
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Contos do corpo, 17 – O sangue do meu sangue

Uma semana depois do incidente no Largo do Rosário, ouço boatos de uma viagem de férias para o Hawaii! Fico esfuziante. Sempre quis conhecer o Hawaii, uma terra perdida no meio do oceano, com gente de aspecto diferente e que parecem estar sempre de bem com a vida, com seus cabelos ao vento, dançando uma dancinha malemolente na praia. Eu me vi tocando tambor na areia e aprendendo a surfar com os nativos. De repente tudo isso fez muito sentido. Eu merecia uma trégua do universo. Deus tinha finalmente olhado para mim e percebido a injustiça. Daí a ideia divinal de me mandar para o Hawaii, onde eu seria feliz, ao menos por quinze dias.

–              Você vai ficar na casa da sua vó – minha mãe disse.

–              Em Guarulhos?!

–              É, ué.

Fui pra Guarulhos.

No terceiro dia, fiquei muito doente. De cama.

Desgosto? Revolta? Raiva? Não sei. Tive febre. Senti arrepios no corpo. Minha cabeça doía. Eu não tinha a menor intimidade com meus avós, não para conviver no dia a dia. Eles pertenciam às festas natalinas. Em janeiro, num dia normal de semana, pareciam outras pessoas. Tudo na casa deles era diferente, sem a árvore, os presentes e um monte de tias na cozinha. Eram apenas os dois, e eu. Meus pais estavam do outro lado do globo terrestre. Eu não sabia como me comportar na casa de duas pessoas idosas sem outras crianças por perto. Fiquei doente.

Minha avó começou a trazer sopas para mim. Eu detestava sopas. Em casa, minha mãe não fazia sopa. Primeiro ela trouxe uma canja. Achei bizarro os fios de frango boiando num caldo. Fui educada, agradeci, mas expliquei que sei lá. Frango boiando. Não consegui. A segunda foi de mandioquinha e eu achei que tinha gosto de papa. Eu mesma estava me sentindo uma gosma. Na terceira vez ela se sentou na cama e ficou conversando comigo. Em vez de perguntar como estava me sentindo, contou coisas sobre sua vida e sua família, que eu nem imaginava. Comecei a ter uma noção de quem ela era e me senti bastante à vontade, deitada em sua cama. Depois de ouvir as histórias dos seus pais, e do meu pai quando ele era criança, fiquei com a impressão que fazia sentido estar ali, e o que estava acontecendo comigo não era nada pessoal. Eu era apenas um elemento de uma família. Eu não precisava ter convivido com eles, ou ter intimidade, pois eu era a neta, e isso já me dava um acesso especial. Nessa hora eu entendi que estava ali porque ali também era a minha casa. Até então eu não tinha percebido isso. E, de um minuto para o outro, fiquei feliz por estar ali.

–              Vou trazer um prato de comida de verdade pra você – ela disse.

Minutos depois voltou com uma bandeja onde havia um prato fundo e um copo de coca cola. No prato, feijão com arroz em cima. Carne moída, purê de batata e uma saladinha de alface e tomate num canto. Em casa nós comíamos a salada antes. Foi a primeira vez que botei arroz, feijão e alface na mesma garfada.

Trinta e cinco anos depois, lembro do gosto desse prato de comida de verdade. Nunca mais comi nada tão bom, em lugar nenhum, em restaurante nenhum. Terminada a refeição, já estava ótima, assistindo televisão com meu avô, que tinha uma risada contagiante. Na manhã seguinte eu estava na rua, brincando na casa da vizinha da frente, que era mais velha do que eu, mas virou uma grande amiga. Passei o resto das férias comendo comida de verdade, descobrindo quem era meu clã, sangue do meu sangue, enquanto meus pais viviam uma fantasia delirante sei lá onde.

 
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