Contos do corpo, 23 – Os pensamentos
Com os dentes amarrados passei a pensar duas, três, quatro vezes antes de abrir a boca para falar.
A pronúncia de determinados fonemas fazia com que os ganchinhos que prendiam os elásticos raspassem no interior da bochecha. Muitas vezes, se me empolgava, mordia a língua no meio da palavra. As pessoas pediam para eu repetir. Não entendiam o que eu dizia. Repetir implicava em machucar de novo, sem garantia de que entenderiam da segunda vez. Eu acenava com a mão, num gesto de “deixa pra lá”.
Cada vez que alguém dizia: “Como é?” ou “Não entendi”, em vez de interpretar como um problema de comunicação, eu questionava se o que eu havia acabado de dizer tinha procedência. Era algo que realmente merecia ser verbalizado?
Rapidinho percebi que nada do que eu tinha a dizer importava de verdade. Minhas opiniões não iam mudar o mundo, não iam sequer convencer alguém do que quer que fosse. Tudo o que eu tinha a dizer podia ser dito por outras pessoas, uma colega de classe, um professor, a mãe de alguém. Eu podia me poupar da dor e do esforço. Então parei de falar e passei a ouvir mais.
Em casa, meus pais acharam que eu estava amadurecendo. Foi lindo. Descobri que é fácil parecer inteligente. No meu caso, bastou calar a boca. No meu silêncio fui me dando conta da quantidade de bobagem que eu dizia, sem parar, sem pensar, o tempo inteiro. As bobagens continuavam ali, saltitando feito girinos eufóricos dentro do meu cérebro. A única diferença é que agora não escapavam mais. Enquanto o mundo achou que eu tinha amadurecido, por dentro eu reprimia o estoque de besteirol. Claro que a coisa teria de extravasar de alguma maneira. Para a minha sorte, foi nessa época que ganhei um diário e comecei a escrever relatos detalhados da minha vida. O silêncio transbordou com uma fúria assustadora. Eu me espantei com minha própria escrita. Botei um cadeado no diário. Guardei a chave no sutiã. Na hora do banho, pendurava a chave em volta do pescoço.
Se havia segredos escabrosos no diário? Não. Nada do tipo. Havia a minha intimidade e meus pensamentos, o que por si só já eram terrivelmente constrangedores.
2 comentários
Olá.
Diário não é bem coisa de menino, mas eu tinha um. Mais do que necessidade de falar, eu queria, na verdade, imitar o Doug, do desenho. Nessa época eu também começava a ler os livros da coleção vagalume, então juntou tudo, escrita e leitura. Minha imaginação que já era fértil se tornou uma plantação de vários hectares. Por que a revelação? Porque eu concordo com o comentário feito por uma leitora no texto anterior, seus contos nos fazem lembrar de coisas de nossas próprias vidas. Tá aí a mágica da literatura. Abraços!
Oi, Fabiano. Agradeço por ter compartilhado essa lembrança tão boa. Relatos assim são super inspiradores. Valeu! bjo, Í