Contos do corpo, 24 – A sublimação da dor
Os elastiquinhos contribuíram para perfilar muito mais que minha arcada dentária. Aprumaram minha postura corporal e relativizaram o conceito de dor. A professora de ballet foi a primeira a notar. Vinte e quatro horas por dia eu sentia a pressão ferrenha dos elastiquinhos forçando meus dentes para a posição correta. Não mais a natural, mas a correta. Meu corpo se solidarizou. Passei a prestar atenção a cada detalhezinho da minha postura. Os ombros para trás, a barriga encolhida, a coluna reta, cabeça erguida, bunda presa, joelhos e ponta do pé bem esticados, braços arredondados, as mãos suaves. Se eu conseguisse fazer com que tudo no meu corpo estivesse correto, quem sabe conseguiria aliviar o martírio dos dentes. Nas aulas de ballet, manter a perna no ar, sem tremer, sustentando com a força do abdômen, deixou de ser um problema. Arquear as costas para trás, tentando encostar os pés na nuca também. Quanto mais antinatural o movimento, mais eu simpatizava. Era uma oportunidade de repartir o castigo por todas os membros do meu corpo. A professora de ballet elogiava.
– Muito bem, Ana Cristina. Perfeito!
Ela me chamava de Ana Cristina. O Cristina equivalia ao elastiquinho. Um elemento estranho que foi cravado ao meu nome, por pessoas que não tinham a menor familiaridade comigo.
Enquanto minhas colegas chiavam, eu me orgulhava da minha imunidade à dor. A tortura dos alongamentos não me incomodava. Aquilo era a minha vida, no dia a dia. Além do mais, para chiar eu teria de abrir a boca, coisa que estava impossibilitada de fazer.
Até nos saltos eu encontrei uma possibilidade de alívio. Eu fazia a preparação com todo capricho para que, na hora de descolar os pés no chão, conseguisse permanecer no ar o máximo de tempo possível, saboreando aqueles preciosos segundos de liberdade. Eram segundos, mas vividos intensamente. Eu decolava como um pássaro solto, leve, irrestrito.
– Isso! – a professora de ballet estava maravilhada comigo.
Um dia, ao final da aula, ela disse que queria falar comigo.
– Espera um pouco, Ana Cristina – ela disse, antes que eu saísse.
Esperou as outras meninas saírem e disse que gostaria de me transferir para uma turma mais avançada.
– Fora isso, acho que você devia começar a fazer quatro aulas por semana. Duas aulas do programa regular e duas de ponta. Já está na hora de você botar sapatilha de ponta.
Botar sapatilha de ponta, na vida de uma bailarina, equivalia a “entrar para o mundo real”. Entrei.