Contos do corpo, 36 – A força sobrenatural
Depois da escola eu batia um belo prato de arroz com feijão, bife e batata; me arrastava até minha cama, jogava os sapatos pro alto e tombava. Acordava três horas mais tarde, por causa da culpa. Havia muita coisa pra estudar, provas se aproximando e a lembrança do meu boletim com notas ridículas.
O ano escolar avançava num ritmo doido, numa sucessão de dias e matérias e novos capítulos que se acumulavam sem parar, sem a menor consideração por nada nem ninguém. Eu estava tão defasada em relação aos meus colegas que nem me sentia na obrigação de tentar acompanhar. Achava fisicamente impossível alcançá-los. Era como se toda minha vida escolar tivesse virado uma longa e exaustiva aula de Educação Física. Eu ouvia a professora Ruth assoprando o apito, apontando o dedo pra minha cara, me xingando de Coisa Mole, ou pior. Só que em vez de me sentir humilhada, eu apenas olhava de volta, sem reação. As ofensas não me atingiam. Eu tinha chegado num ponto em que começava a concordar com ela. Mentalmente eu era uma coisa mole mesmo. O único lugar em que conseguia encontrar vigor era nas aulas de balé. Na escola, eu era geleia.
Em casa, depois que acordava da soneca vespertina, era pior que geleia. Eu era a gosma em pessoa. Eu só olhava para a expressão de desgosto no rosto da Ruth. Abria os olhos, com dificuldade, e tinha uma clara visão do seu corpanzil parado ao pé da minha cama. Os lábios franzidos e um movimento de cabeça de quem não acredita no que está vendo. Ela soprava o apito com mais força, como se eu fosse um animal. Largada na minha cama, eu era pior que um animal. Por mais que eu invocasse a presença da Ruth, pra me ajudar a combater a preguiça mortal, não surtia efeito.
A preguiça era uma força sobrenatural que imobilizava meus membros. Não permitia nem que eu afastasse a cabeça do travesseiro, quanto menos levantar, sentar à escrivaninha e abrir um livro para estudar. Tinha dias em que ela impedia que eu abrisse os olhos. Eu forçava as pálpebras, esfregava, segurava com os dedos, mas elas não obedeciam. Fechavam de volta. Se eu insistisse, puxando-as pra cima e pra baixo, deixando meus glóbulos oculares escancarados, acontecia algo apavorante. Meus olhos rolavam para trás, como num filme de terror. Daí eu soltava, tampava os olhos com as mãos e ficava pensando no meu futuro. Pensava em todos os adultos que trabalhavam em horário comercial, sem chance de tirar uma sonequinha no meio da tarde. Pensava nos meus colegas que tinham boas notas e nos professores que se dedicavam tanto pra que eu me tornasse alguém na vida. Pensava nos meus pais trabalhando dia após dia, pra me alimentar. Pensava até em Alexandre, no Padre Lúcio, em Thaís e em todas as pessoas funcionais que habitavam o planeta. Pensava nos ativistas do Greenpeace, em Jesus Cristo. Pensava nas palavras do antigo testamento, tendo consciência de que eu estava me entregando a um dos sete pecados capitais. Nesse ponto eu me dava conta de que minha imobilidade tinha, sim, uma força motora, que era ninguém menos que o Demônio tomando conta do meu corpo. A tal força sobrenatural que me pregava à minha cama tinha nome. Satanás era um deles. Só assim eu encontrava energia para me ejetar dali, jogar uma água gelada no rosto e tomar uma atitude.
2 comentários
Oi, Índigo.
Continuo adorando essa série do corpo. A coisa que mais me encanta é essa sua capacidade de retratar a adolescência que nos faz sentir uma certa nostalgia(embora as experiências nesse período sejam diferentes para meninos e meninas), uma identificação e um pouquinho de tristeza também que imediatamente some com uma frase engraçada. Perfeito!
Bjos!
Olá Índigo
Concordo plenamente com o Fabiano ele escreveu tudo. Nem posso mais escrever nada.Perfeito.