Contos do corpo, 37 – A força sobrenatural continua
Isso tudo aconteceu no século passado, quando a solidão ainda era absoluta. Não existia internet. Sozinha no meu quarto, sentada à escrivaninha, ficava entregue a meus pensamentos. Ninguém pipocava num cantinho da tela. Nem tela havia. Se eu quisesse desabafar, teria de recorrer ao meu velho diário de papel, um objeto inanimado, austero e blasé, que não estava minimamente interessado em saber no que eu andava pensando. Ninguém ia curtir nada que eu escrevesse. Ninguém ia sequer ficar sabendo. Sozinha no meu quarto eu não existia para o resto do mundo. Se era solitário? Absolutamente. Uma solidão que hoje não existe mais. Se eu gostava? Eu adorava.
Considerando as condições de isolamento total, não deveria haver empecilhos para me concentrar nos deveres de casa. Afinal, não havia interferência. Bastava abrir o livro e estudar, certo? Errado. Eu divagava feito doida. Quem disse que para perder a concentração é preciso Facebook? Qualquer parede servia. Eu olhava para o vazio e divagava. Embora tivesse me levantado da cama e vencido a preguiça, ainda havia o próximo passo: ser produtiva e estudar.
Inventei meus próprios mecanismos. Pegava um despertador e criava mini-prazos. Eu me dava vinte minutos para ler um capítulo e fazer os exercícios. Acionava o despertador. Para ajudar, imaginava que na sala ao lado havia um chefe nervoso que entraria no horário determinado a fim de verificar meu desempenho. Como incentivo adicional, estabelecia consequências como, por exemplo, perder o emprego ou ter de trabalhar até tarde da noite. Curiosamente, nunca passou pela minha cabeça criar consequências positivas caso eu cumprisse meus objetivos dentro do prazo. Por que nunca considerei ganhar um bônus adicional ao meu salário, se eu terminasse a lição de matemática em menos de meia-hora? Eu sei a resposta. Por causa da minha mentalidade de operária.
Foi nessa época que comecei a tomar consciência do lapso entre aquilo que eu almejava e aquilo que conseguia executar. Traduzindo, minhas limitações.
Era comum acontecer do despertador tocar quando eu estava no meio da atividade. Daí ficava a dúvida. Prolongar meu prazo ou deixar por isso mesmo e partir para a próxima lição de casa? Se prolongasse, invalidaria o método. Era preferível me ater às regras e seguir adiante, sob o domínio do despertador. Por outro lado, uma vez que eu tinha começado, queria terminar. Mas, sem o rigor do despertador, não havia garantia de que sozinha, solta e sem cobrança, fosse conseguir concluir qualquer coisa que fosse. Era um grande dilema. Na maioria das vezes eu seguia trabalhando livremente, sem a pressão do tempo. E daí eu fracassava. Perdia horas e horas, avançando a passos de tartaruga, sem concluir nenhum processo. Anoitecia e estava tudo pela metade. Quando dava a hora de dormir eu me sentia frustrada e incompetente. No dia seguinte, na escola, ficava abismada ao constatar que minhas colegas tinham – sei lá como – conseguido completar as atividades de casa. Eu conseguia enxergar direitinho o futuro de cada uma: advogada, arquiteta, engenheira, gerente de hotel cinco estrelas, arqueóloga. E eu?!
Imagem: Andrey Pavlov
1 comentário. Aleluia!
Que lindo este conto…amei e é bem verdade tudo o que vc escreveu. Num reino tão, tão, tão distante nem facebook tinha pra nos distrair, porém acredito que nós usávamos muito mais nossa imaginação.Por este motivo conseguimos dar conta melhor dos problemas. Lembro que meu pai desenhou no meu quarto a turma da Monica, a Luluzinha e a Minie e eu amava ficar cantando para as personagens fazendo show. Fui por muito tempo criança. Livre, desapegada e peralta. Mas sempre muito louca por livros e foi isso que me estimulou a estudar.Comecei a ler aos 5 anos ai sai da cantoria e comecei a ler para as personagens pintadas nas paredes…ai que saudade. Como é bom ler seus contos e poder fazer esta viagem….Força na peruca pois a minha esta molhada com tanta chuva que esta caindo neste lugar. Beijocas