Contos do corpo, 38 – Outros pés
Certo dia eu estava entrando na aula de ballet quando um grupo de meninas tagarelas passou por mim e entrou na sala que ficava bem em frente à minha. Deixaram a porta aberta. Eu nunca tinha visto aquelas garotas antes. Eram diferentes. Sentaram-se no chão, abriram as mochilas e calçaram sapatos pretos reluzentes, em vez de sapatilha de ponta, como era de costume. Quando se levantaram, e começaram a se aquecer, foi como se uma cavalaria tivesse invadido a escola. Minhas colegas da aula de ponta vieram ver também. Ficamos paradas na entrada da sala da cavalaria, observando. Até a professora que ia dar aula para elas era nova e diferente. A mulher sorria. Sorriu para nós e perguntou se queríamos assistir um pouquinho. Nossa professora, do outro lado do corredor, acenou com a mão, meio que nos enxotando, meio que dando permissão.
– Cinco minutos – rosnou.
Entramos no estábulo e nos sentamos com as costas grudadas à parede, coluna reta, barriga presa, cabeça erguida. Os pés, já presos, amarrados e socados dentro da sapatilha de ponta, recolhidos junto ao corpo.
A professora ligou o som e uma musiquinha espevitada, um jazz alegrinho que ninguém esperava, começou a tocar. Na mesma hora as meninas saíram sapateando feito personagens da Disney. Seus pés emitiam sons. Conforme moviam as pernas, compunham a música que por sua vez gerava a dança, num intercâmbio amalucado entre corpo, música e dança. Tudo acontecia ao mesmo tempo, e sem esforço. Elas até conversavam entre si enquanto suas pernas quicavam com movimentos molengas e inócuos. Era como se estivessem tendo um siricutico coletivo que, por algum mistério insondável, ficava harmônico. Tudo me pareceu solto, espontâneo e esculachado na comparação com o martírio do ballet clássico. Vendo aquilo, me senti uma aristocrata decadente. Comecei a questionar meu senso estético e, principalmente, minha tendência sadomasoquista. Algumas eram gordas. A barriga oscilava enquanto elas saracoteavam. Seus cabelos ficavam soltos. Uma delas estalava os dedos enquanto sapateava serelepe pela sala, abrindo e fechando os braços, fingindo que estava de cartola, tirando a cartola da cabeça, só pra fazer um charme. Minhas colegas de ponta observavam com a coluna ereta e nossa típica expressão blasé. As sapateadoras eram a antítese de tudo aquilo que acreditávamos ser correto: controle, força, eficiência e equilíbrio. Elas pareciam bêbadas felizes, e eu me identifiquei.
– Vamos lá, meninas? – disse a nossa professora, com seu coque austero e gestual de dama da corte de Luis XV.
De volta ao mundo do ballet clássico, pela primeira vez me perguntei o que eu preferia: ser bailarina ou dançar. Nesse dia me dei conta de que enquanto eu estava sendo bailarina, mundo afora as pessoas dançavam satisfeitas com suas barrigas, seus cabelos, embaladas pelo movimento natural dos pés. Havia pés que saltitavam pelo chão, pisando na terra com a sola e os dedos, de acordo com o que Deus quis, sem se ensanguentar no processo, sem bolhas ou esparadrapo. Ao contrário de mim.
1 comentário. Aleluia!
Oi Ídigo
Nossa este conto certamente daria um excelente teatro…já fiquei imaginando nossos alunos encenando. Beijocas e força na peruca.