Contos do corpo, 40 – O dia D
Eu não entendo como aconteceu. Foi um choque para mim. E o pior era a sensação de impotência. Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Lá estava. Era um fato da vida. Irreversível. Essa foi a palavra que me veio à mente. Irreversível. Abri a janela. O dia estava ensolarado, pelo menos. O estranho mesmo é que eu nunca imaginei que fosse acontecer comigo. Nunca. Embora não conseguisse falar a respeito, era só nisso que pensava. Tenho quarenta anos. Assim, do nada. Um dia estou vivendo normalmente, e de repente, quarenta anos.
Não tive culpa. O que eu tinha feito? Nada! Só fui vivendo um dia após o outro e quando menos percebi, era meu aniversário de quarenta anos. Quarenta, eu?! Sim, eu.
Era completamente ridículo, obviamente. Eu não tinha a menor condição de carregar quarenta anos nas costas. Havia acabado de me casar e ainda me sentia superapaixonada, como se tivesse quatorze, certa de que tinha a vida inteira pela frente. Até minha carreira era uma grande incógnita. Se me perguntassem, eu respondia que era escritora e daí me controlava para manter uma expressão séria. Escritora… Existe profissão mais inverossímil? O que mais me espantava era as pessoas acreditarem. E por que não acreditariam? Eu havia escrito mais de vinte livros, tinha lá uns prêmios literários no currículo, dava palestras, visitava escolas. Quem visse de fora, podia de fato acreditar. Mas eu, que me conhecia muito bem, não podia ser tão ingênua. Eu escrevia livros, ok. Mesmo assim, ainda achava que seria outra coisa, quando crescesse.
Quanto ao meu corpo, não havia nada de errado com ele. Tudo continuava funcionado. Nos meses anteriores não senti nenhuma dor, febre, um cansaço repentino, arritmia, alteração na taxa de glicose, colesterol, vista cansada, não engordei, nada. Não tive nenhum sintoma. Isso explicava parte da surpresa. Nem engravidar. A meu ver, meu corpo era igualzinho o que sempre foi. Se eu tivesse uma filha de dezesseis anos, por exemplo, que menstruasse e tivesse peitos, e trouxesse o namorado para casa, daí talvez eu sentisse o perigo se aproximando. Mas eu não tinha referências de envelhecimento. Como nada de extraordinário havia acontecido com meu corpo, eu simplesmente fui vivendo minha vida, sem me preocupar com isso. Até o dia que aconteceu.
A grande pergunta era o que eu ia fazer dali em diante. Procurar um médico, foi a primeira coisa que me veio à mente. Passei o dia esperando que a idade batesse. Uma queda de pressão, uma crise de labirintite, um puxão no ciático. Uma câimbra, pelo menos. Nada. Era sábado. Fui para a rua e me enfiei no meio da multidão. Afinal, eu não era a única passando por isso. Estar cercada de gente ajudou um pouco.
Nesse dia me olhei no espelho com mais atenção. Examinei bem meu rosto e achei que tudo estava no lugar. Aparentemente, não havia com o que se preocupar. Talvez fosse mais psicológico do que físico.
Imagem: Wikipedia