Contos do corpo, 41 – A consulta
O médico disse que eu não precisava me preocupar, por enquanto. Em todo caso, me recomendou umas vitaminas e disse que eu tinha feito bem em ter agendado uma consulta enquanto a coisa ainda estava no começo. Começo do fim, pensei comigo.
Ele perguntou sobre minhas atividades físicas.
– Luto Kung Fu – respondi.
Ele pareceu impressionado.
O pior é que era verdade. Eu estava na faixa verde. Ao final dos treinos, mal conseguia acreditar que continuava viva, respirando. Era sádico. A academia ficava a dois quarteirões de onde eu morava e mesmo assim tinha a impressão que teria de engatinhar para chegar em casa. Eu atingia a exaustão total. E por total, é literal. Ao final do treino, depois do último grito coletivo, eu desmoronava no chão e ficava estatelada, agradecendo por mais aquele dia de vida. Meus companheiros de treino, todos mais jovens do que eu (obviamente), eram respeitosos e passavam pelo meu corpo sem incomodar. Depois de vinte minutos, Mestre Chao desligava as luzes da academia e me dava o braço. Eu levantava e ele ajudava a descer as escadas. Daí eu rastejava até em casa, dava um jeito de entrar debaixo do chuveiro e conseguia alcançar a cama. No dia seguinte me levantava feito um raio, energizada, pronta para as batalhas mundanas.
Acrescentei:
– Treino três vezes por semana.
– Ótimo – disse o médico. – Continue assim. E a alimentação?
A alimentação, não importa o que você faça, sempre pode ser melhor. Mas a minha era razoavelmente boa. Além disso, havia a vantagem de eu não tomar remédio algum, para nada. Portanto, ele recomendou que eu fizesse exames rotineiros uma vez por ano e bebesse bastante água.
Daí ele perguntou sobre filhos.
– Não deu tempo – respondi.
Não imaginava que eu chegaria tão de repente aos quarenta anos. Fui vivendo minha vida e esqueci de que em algum momento eu teria de parar e ter filhos. Eu sabia de mulheres que engravidaram aos quarenta, mas duvido que alguma delas estivesse se preparando o exame da faixa azul. A partir da faixa azul começamos a treinar com espada. Até então eu só usava o chaco, uma arma truculenta, de gangue de rua, e que não tinha nada a ver com a minha personalidade, tanto que eu vivia metendo o chaku na testa. Num par de vezes, por pouco não quebrei o dente da frente. Mas a espada… seria sublime.
Eu já conseguia me ver rodopiando no ar, com a espada reluzente apontada para o céu, degolando pessoas e furando barrigas. Eu me via de macacão amarelo e botinha preta. Uma ninja moderna, chique e perigosa. A escolha era simples. Um bebezinho ou uma espada de samurai. Eu podia ter quarenta anos, mas meus instintos ainda eram bem brutos. Portanto, espada seria.
Imagem: cena do filme Kill Bill
2 comentários
Oi Índigo
Ler o seu conto me deu uma ideia:
Queria tanto hoje meter o chaco na testa de alguém kkkkkk.
Melhor abafar o caso, mais estou pensando seriamente em ser uma ninja. Que fofinha eu seria. Índigo, vc tem o poder de me fazer ir as nuvens com seus contos. Depois pra eu voltar é um problema. Fico imaginando cada situação narrada nos contos conforme vou lendo. Ai chega um aluno ou algum telefonema, pais, professores e cá estou eu voando na imaginação. Sabe que estou até ficando mais calminha depois que comecei a ler seus contos durante o trabalho nas horinhas em que da um tempinho? Putz preciso voltar ao trabalho…..gente me chamando. Beijocas….Fuiiii
Ok, te dou licença para trabalhar, mas volte! E traga sua turma junto. beijinho e saudades.