Contos do corpo, 5 – A volta do corpo material
Aos quatro anos de idade, novamente tive surtos de voo livre. Dessa vez não foi tão metafísico, como no dia em que saí voando dentro da igreja. Os episódios aconteciam enquanto eu dormia. Acordava em pé, em cima da mesa de jantar, com os braços abertos. Lembro da sensação de choque no momento em que eu despertava. Primeiro, me dava conta de que meu corpo tinha saído da cama. Depois, que agora eu tinha pernas e braços, o que era horrível. Na sequência vinha a tomada de consciência. Eu estava encarnada num corpo material. Meus pais acordavam. Era caía no choro. Eles tentavam me acalmar. Perguntavam o que eu estava sentindo. Eu não conseguia colocar em palavras. Estava me sentindo limitada e desarticulada.
Sei lá por que diabos, havia voltado ao ciclo reencarnatório. Agora teria de começar tudo de novo, na matéria. Álgebra, tabela periódica, caxumba, menstruação, vestibular, ressaca, currículo, gravidez, dívidas, empréstimo, inventário e próteses. Eu só olhava para a cara dos dois, me perguntando se havia um caminho mais fácil.
– Dorme, filha.
Com o tempo meu espírito foi se acostumando à ideia de ser uma menina, e eu passei a acreditar piamente nisso.