Contos do corpo, 7 – Dentes de leite
A primeira vez que tive a sensação de ter me encontrado, de verdade, foi num dia em que mexi na gaveta de bijuterias da minha mãe. Era a década de 1970 e ela tinha pulseiras fantásticas, de plástico, com purpurina dentro; colares de bola de acrílico e correntes douradas. Havia braceletes em formato de serpente e tornozeleiras com guizos. Era tudo o que uma odalisca sempre sonhou. Mas eu realmente me encontrei, pelo menos parte de mim, quando abri um saquinho de veludo. Eram meus dentes de leite.
Na escola, havia meninas que usavam correntinhas com o dente de leite pendurado no pescoço. Eu achava aquilo de um mau gosto tremendo. Disso, pelo menos, minha mãe me poupou. Ela simplesmente os guardou num saquinho. O dente caía, eu entregava para ela e não pensava mais no caso.
Quando caiu o último dente, ela me deu o saquinho com todos eles.
– O que eu vou fazer com isso? – perguntei.
– São seus. Guarda.
Sendo mãe, não teve coragem de jogá-los no lixo. Mas também devia estar se sentindo um pouco mórbida, guardando aquilo. Então os devolveu para mim. E repetiu.
– São seus.
Não gostei de ter de assumir a responsabilidade por uma coisa que um dia, no passado, tinha pertencido a mim. Fiquei de mau humor, pensando que agora teria de carregar aqueles dentes comigo durante toda a vida, até o dia da minha morte. Se era parte de mim, o correto seria colocá-los no caixão, junto comigo. Foi um peso. Principalmente porque logo depois desse episódio, nós mudamos de casa. Minha mãe me deu uma caixa, para que eu arrumasse as minhas coisas. Botei o saquinho de veludo no meio, resmungando que teria de carregar aquela porcaria a vida inteira. Dois anos depois, mudamos de novo, e novamente eu levei os dentes. Na terceira mudança já não sofri tanto. Meti o saquinho de veludo no fundo da minha caixinha de joias e nem pensei duas vezes. Foi assim quando saí de casa, aos dezoito anos e depois, de casa em casa, até me estabelecer definitivamente.
Esperei até dois mil e quatorze para dar um fim aos dentes de leite. Em fevereiro desse ano destruí cartas, diários, fotografias e cadernos, sem dó. Na hora de decidir o que fazer com os dentes, a primeira ideia foi enterrá-los no jardim. Depois cismei que isso poderia acelerar a minha morte.
Fui até um despenhadeiro e atirei um por um. Eu já tinha passado dos quarenta anos e dentinhos de leite eram um detalhezinho de nada, na contabilidade geral.
5 comentários
Ah, gostei muito desse. Pode parecer bobeira, mas me pareceu uma espécie de agradecimento às letras que formam as palavras com as quais você escreve, tipo a ferramenta do escritor. Tô gostando bastante também dessa série sobre o corpo porque me faz lembrar do Cobras em Compota, o livro em que descobri essa tal de Índigo, escritora super talentosa. Muito legal.
Oi, Fabiano
Pois é, essa série tem relação direta com “Cobras em compota”. É da mesma família. Fico feliz por você estar gostando. Adoro esses retornos. É um estímulo para seguir em frente. bjo
Perdão, o comentário foi no conto errado. Mas, sim, gostei desse também. Abraços!
Mais um comentário (comentário meio saudosista causado pela sensação da leitura): lendo este conto me lembrei de minha avó. Quando caía um dente, ela nos dizia para jogar em cima do telhado e cantar uma musiquinha para que a andorinha nos trouxesse um outro dente bom. Desculpe o incômodo. Fui!
Essa da andorinha eu não conhecia. Gostei! bjo