O crime da vizinha
Hoje deixo vocês com um conto. Eu o escrevi em 2005, mas poderia ter sido ontem à noite. Está mais atual do que nunca. Aí vai:
O crime da vizinha
Tom corria de um lado pro outro com um balde entalado na cabeça, feito uma galinha depenada, e ensopada. Isso, porque antes de ir parar na cabeça de Tom, o balde estava cheio de água fervente. Além de ensopado, Tom devia estar ardendo. Quem ferveu a água foi Jerry, que agora chorava de rir. Mudei de canal.
No documentário mostravam como ficará o planeta Terra daqui a quinze anos. Não é à toa que esse é o nome do planeta. É um recado de Deus. Se as pessoas continuarem a se comportar que nem Tom e Jerry, em quinze anos só um terço da humanidade terá água para beber. O documentário mostrou como eles fazem na África. Eles deixam os bebês sentados no meio do continente, no chão rachado, e as mães saem andando com baldes na cabeça. As mães africanas usam a cabeça como apoio para o balde. No caso de Tom, o balde ficava entalado. Os bebês ficam ali enchendo a boca de areia enquanto as girafas passam bem juntinho, quase os pisoteando. Tem vezes em que Jerry obriga Tom a se atirar do alto de um trampolim e mergulhar numa bacia d’água, esparramando água para todos os lados. Desliguei a televisão e fui para a rua.
Então será assim. Quando eu crescer as pessoas estarão mortas por causa de doenças contagiosas. Haverá guerra entre os países e no Brasil só os ricos poderão tomar banho. Não haverá mais piscina, sorvete, raspadinha, patinação no gelo, zoológico, Parque do Ibirapuera e festas de aniversário. Eu não terei um bichinho de estimação porque eles bebem água e a gente não vai poder gastar água com bicho. Parques aquáticos serão coisa do passado. Quando eu contar aos meus netos que escorregava num tobogã de cinqüenta metros e caía numa piscina, eles vão gargalhar na minha cara e dizer que estou caduca. O mais provável é que não terei netos, ou filhos. Não haverá água para lavar bumbum de bebê. Bebês sujam, em média, dez fraldas por dia. O governo vai estabelecer uma multa para quem tiver filhos. O mesmo vai acontecer com quem ficar desidratado e precisar beber muito líquido. Se você ficar desidratado, o médico vai lhe dar um remedinho que fará você cair morto. Isso significa que ninguém mais irá à praia. Na praia as pessoas bebem muito líquido. Haverá uma cota de copos d’água que você poderá tomar por dia. E se a pessoa encontrar um jeito de beber água no mercado negro, para não ficar desidratada, ela será presa. Para evitar de ir presa a pessoa não beberá água, ficará desidratada e morrerá. Assim, ninguém mais irá à praia.
Vamos importar camelos. Os camelos têm reserva d’água na corcunda. Em vez de criar vacas, que bebem água e babam, criaremos camelos. Quando a situação se agravar, tudo o que sobrará é a água da corcunda deles. Será como o leite da vaca. Só que no caso dos camelos, sai por cima. Felizes foram as pessoas que nasceram na Babilônia. Elas moravam em lindos jardins, sem nenhuma preocupação com o futuro. E eu ali, sentada na calçada quente, morrendo de sede e sem coragem de beber um gole d’água, pelo bem da humanidade.
No meio dessa minha agonia, a vizinha da frente abriu o portão e me cumprimentou de mangueira na mão. Esguichando.
– Olá, querida.
Ela largou a mangueira e voltou para dentro de casa. Arrastava os chinelos. Corri para a mangueira e enfiei o dedo. Segurei com toda a força, mas a mangueira começou a rebolar, feito uma minhoca. Meu dedo inchou. Doía. Eu agüentaria a dor! Mesmo que ele ficasse roxo. Não importava. Apesar de todo meu esforço, jatos d’água escapavam. Soltei a mangueira, que voou para cima de mim feito uma cobra. Fiquei encharcada por uma água que não voltaria mais. A água agora escorria por cima do meu pé, corria rua a baixo e fugia pelos bueiros. Lembrei-me então o motivo pelo qual aquele esguicho foi aberto, para começo de conversa. Era para varrer as folhinhas da calçada. Mirei o esguicho nas folhinhas que não desgrudavam. Com vassoura elas desgrudariam. Lembrei do bebê sentado no continente africano.
Quando a vizinha voltou, disse que não era bom eu ficar com a camiseta molhada, pois estava esfriando e eu podia pegar uma pneumonia. Que diferença fazia pegar uma pneumonia se todos íamos morrer de qualquer jeito? Foi isso que eu quis perguntar. Minha garganta começava a doer, como se tivesse um caroço entalado. Comecei uma frase, mas a vizinha pediu para eu esperar um pouquinho. Ela já voltava. O telefone estava tocando. Peguei a mangueira no colo. Dessa vez resolvi que não ia lutar com ela. Sentamos no meio-fio. Se alguém me visse ali, segurando aquele esguicho solto, o que pensaria de mim? Tive uma idéia! Eu podia aguar as plantas da rua. Aguei o canteiro. Fui para a árvore da outra vizinha e molhei seu tronco. Molhei as folhas e a terra. Molhei bem, até ficar lamacento. Pronto. Não tinha mais nada para aguar na rua. A dor de garganta aumentou. Pensei em enfiar a mangueira goela a baixo e me abastecer para o resto da vida. Se eu fosse um camelo, daria certo. Eu podia me assegurar pelos próximos anos. Seria uma a menos para o planeta. Toda vez que sentisse sede, eu puxaria um pouco e engoliria. O resto ficava guardado na corcunda. Seria feio, mas nas atuais circunstâncias, não podemos nos preocupar com estética. No caso das mulheres, a ciência podia inventar um jeito para armazenarmos nos peitos. E isso teria a vantagem de economizar silicone, que também é fabricado à custa de muita água. Tudo que é fabricado, é à custa de muita água. Até coca-cola. A vizinha voltou e eu tentei dizer tudo isso. Só que em vez de palavras, veio uma tosse que virou choro, por causa do caroço na garganta. Eu não queria ter chorado. Eu sabia que se eu chorasse, ela ia se dobrar até ficar do meu tamanho, olhar bem nos meus olhos e perguntar qual era o meu problema. Foi o que ela fez.
Engoli as lágrimas e gritei, pelo amor de Deus, para ela fechar aquela torneira. A vizinha correu para o fundo da garagem e fechou a torneira. Quando ela voltou, eu chorava mais ainda. Minhas lágrimas eram salgadas e não serviam para nada. Nada. Apesar do planeta ser quase todo coberto por água salgada, essa água não serve de nada. Só a doce serve. A doce estava ali, ainda escorrendo, correndo pela rua. Mesmo com a torneira fechada, ela ainda vazava feito um rio.
A vizinha passou o braço no meu ombro e, andando bem devagarinho, foi comigo até em casa. Disse para eu ficar calma. Eu chorava feito um bebê. Por mais que quisesse parar, não conseguia. Estava sendo ridícula e tive vontade de sair correndo para o meu quarto. Mamãe me segurou. Disse para eu dizer o que estava acontecendo. A vizinha explicou por mim. Disse que eu estava tranqüila, brincando na calçada e, do nada, comecei a chorar. Mamãe não acreditou. Pediu que eu dissesse alguma coisa. Eu não conseguia falar. A vizinha repetiu, pela segunda vez, a sua versão. Nada de mangueira, telefone tocando, camelos, bebês na África, balde na cabeça, cotas, guerras, desidratação, nada. Só que eu, do nada, comecei a chorar. Mamãe suspirou e agradeceu. Depois pediu desculpas. Agradeceu de novo.
Entramos. Mamãe trouxe um copo d’água. Eu chorei ainda mais. Bebi a água e engasguei. Cuspi um monte pra fora. Mamãe mandou eu tirar a camiseta molhada. Ela ia colocar para lavar. Eu falei que não precisava lavar, mas ela não me ouviu e jogou a camiseta na máquina de lavar. Disse para eu ir tomar um banho. Eu respondi que não precisava tomar mais um banho, que tinha tomado banho de manhã. Cada frase que eu dizia, saía mais gritada. Mamãe me deixou sozinha na sala. Fiquei chorando um tempão, até que as lágrimas foram secando, pouco a pouco. Ouvi trovoadas. Mamãe trouxe uma camiseta seca e um cobertor. Levou o copo d’água, vazio. Caíram as primeiras gotas, bem gordas. Depois vieram outras. Caíram cada vez mais rápido, até ficar impossível ouvir cada uma delas. Caíram todas juntas, de uma só vez, aos milhares, bilhões, zilhões. Era uma infinidade de gotas gordas e docinhas caindo do céu. Uma tempestade forte, alegre e barulhenta, que uma hora também ia acabar.
4 comentários
Por isso é que crianças de 30 anos como eu adoram os seus textos. Pena que esse é bem triste justamente por ser tão real. Abraços!
Valeu, Fabiano! bjo
Como adoro esse conto. Alias, o livro do qual ele faz parte é o meu favorito 🙂
Eu gosto muito dele, porque – na minha interpretação acredito que descreve a primeira menstruação da personagem.
No livro, ela conta que transformação que está passando tem a ver com hormonios em ebulição.
E acho muito bonito a maneira é descrita o que seria o tensão pre menstrual (choro entalado, as trovoadas que ela escuta) e depois a ideia da chuva como metáfora para a menstruação em si.
Não sei se viajei, mas interpreto dessa forma.
Adoro seus livros
Oi, Henrique
É uma bela interpretação. Taí! Gostei! Agradeço o comentário. Fiquei pensativa. beijos, Índigo